terça-feira, setembro 20, 2005

Viagem

"A estrada que vai é a mesma que vem, como se fosse um saco, era assim a nossa aldeia, e o isolamento conseqüente. Pior, porque também não tínhamos aquela figura mágica do trem, como aquele de Nova Russas, com seus viajantes e suas notícias. Então, tínhamos de gravitar em torno de nós mesmos, quando ali, em comum, éramos a feira, a igreja, as estrepolias do vigário, as manhas do nosso coronel — que Deus os tenha a ambos, padre e coronel, Inácio e Honório — quem viveu se lembra
(...)
Tínhamos uma raça de músicos, os Alfredos, onde Chic’Alfredo, Zezé, Pedim, Mané, e mais outros Alfredos cujo nome não lembro, eles sozinhos faziam uma orquestra, a nossa banda de música, piston, trombone e tudo o mais que fosse instrumento bonito de soprar e bater. Para dizer que a orquestra não era apenas Alfredos, havia o Manoel Aceno, nosso multi-faz-tudo, músico, com seu bombardino imenso, fon-ron-fon-fon, que também era pedreiro, carpinteiro, pintor, ferreiro, dono das bicicletas de alugar e caçador de botijas em casas velhas. Desconfio que esse Mané Aceno também fazia versos.(...)
Em suma, todo o nosso isolamento, mas tínhamos os nossos poetas, a nossa cultura interior. Lembro do Luís Leitão. Viajávamos no velho Ford-F5, do seu Honório, uma viagem imensa, Fortaleza-Monsenhor Tabosa, 3 dias de viagem, muitos atoleiros, o velho caminhão quebrou no Jacampari, antigo Catolé, e esse Luís Leitão danou-se a falar coisas sábias, da Segunda Guerra Mundial, acho que até da Primeira ele falou, da dívida do Brasil — 80 milhões, ou já eram bilhões, sei lá, acho que nunca pagaram aquela conta! — e tantas outras coisas.(...)
E as serenatas. “Por favor, meninas, fechem a porta, que eu vou fazer uma serenata” — dizia o Regino às moças da calçada. E mal a chave rangia por dentro das camarinhas, Regino abria o vozeirão, devidamente surdinado por um caneco de alumínio — era assim que ele cantava, com um caneco em trompa — contam as bisavós de agora, as moçoilas de então.
Lembro dele, sim. Viajávamos num caminhão para Fortaleza, numa parada daquelas bem animadas no hotel de dona Mendonça, em Santa Quitéria, e Regino falava de um certo Marcel Proust. Quem diabo será esse tal de Marcel Proust, perguntava-me admirado com o saber do conterrâneo. Agora, na maturidade, Regino Amaral planta seu livro, um resgate bem de dentro das raízes das árvores, porque ele de há muito sabia de Marcel Proust e já plantava dois alqueires de milho."


Soares Feitosa